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02/05/2010

Tudo Sobre Minha Mãe (1999)

Antes de Esteban (Eloy Azorín) e Manuela (Cecília Roth) começarem a assistir ao clássico All About Eve, o filho reclama com a mãe sobre as traduções (ou melhor, adaptações) dos títulos de filmes. Aqui a obra de Joseph L. Mankiewicz virou A Malvada, na Espanha Eva al desnudo, Manuela argumenta que o nome original literalmente traduzido soaria estranho. Assim mãe e filho começam a sessão de uma das obras mais poderosas do cinema americano, obra essa que vai ser homenageada de uma forma ímpar por Pedro Almodóvar em seu melhor trabalho: Tudo Sobre Minha Mãe.

Esteban tem 17 anos, seu sonho é ser escritor. Manuela foi atriz amadora e agora trabalha como enfermeira, além de administrar e fazer campanhas comerciais sobre doação de órgãos. Depois de assistirem a peça "Um Bonde Chamado Desejo" estrelada por Huma Rojo (Marisa Paredes) e sua amante Nina (Candela Peña), Esteban é atropelado e morto ao tentar pedir um autógrafo a Rojo. A partir do trágico acidente, a vida de Manuela muda completamente quando decide voltar para o seu passado, saindo de Madri e indo a Barcelona com o intuito de encontrar o pai de Esteban, Lola (Toni Cantó), que nem sabe da existência do filho e há anos se transformou em travesti. Lá ela encontra sua velha amiga também travesti e prostituta, Agrado (Antonia San Juan), que foi vítima de um grande roubo por parte de Lola. As duas então tentam conseguir emprego através de um grupo de freiras, que empregam assistentes sociais para ajudar as mulheres no mundo da prostituição. Elas conhecem a meiga Irmã María (Penélope Cruz), que está grávida de ninguém menos que Lola, precisando mais de ajuda do que as duas amigas. Logo após assistir outra sessão da peça de Tenesse Williams, Manuela conhece Huma, que a pede ajuda para encontrar Nína, viciada em heroína. Por conseguinte, ela acaba conseguindo um emprego como assistente da atriz e até substitui Nína na peça em uma noite.














Apenas lendo o parágrafo acima, o roteiro de Almodóvar parece bizarro e um tanto novelesco, e é. A magistral diferença se encontra na delicadeza com que o espanhol conduz a trama, tão irrepreensível que, nesse caso, bizarrice e realidade andam de mãos dadas. A sua homenagem a película estrelada por Bette Davis nunca é gratuita, muito pelo contrário, ela impulsiona e dá uma singular vida a obra da forma mais natural possível devido a sua inacreditável sutileza. Nem mesmo quando Nína ataca Manuela ao dizer que ela é igual a Eve Harrington por estar decorando as falas de sua personagem o clássico se sobrepõe ao filme, tamanha consciência do diretor em não deixar a grandiosa independência do seu projeto ser prejudicada por possíveis deslizes ao aplicar referências em abundância, que poderiam levar desastrosamente 'Tudo Sobre Minha Mãe' ao nível de pseudo-intelectualismo execrado. Obviamente esse fator não se aplica apenas a "A Malvada", mas também a "Um Bonde Chamado Desejo", que serve como chamariz para a proposta do diretor, mesmo quando Huma cita a máxima dita pela personagem de Vivien Leigh não soa forçado. Almodóvar é tão seguro que não tem medo de represálias. O enquadramento de um retrato de Bette Davis está lá escancarado para comprovar essa segurança de interdependência.











Nesse trabalho Almodóvar reafirma seu amor viciante pelo sexo feminino, simplesmente eliminando qualquer vestígio de poder masculino. O diretor mata Esteban, mas também mata o pai do garoto de alguma forma e expurga a masculinidade da melhor amiga de Manuela, só existem Lola e Agrado, nada mais. As mulheres comandam, dominam, são dominadas por outras mulheres, se destroem e se reconstroem. O lesbianismo é a mulher, o desejo é a mulher, a força é a mulher, e não posso deixar de dizer que o castelhano apenas ajuda no fornecimento do poder onipresente. Não é por acaso que o pai de María sofre de demência, que, tirando o parceiro de teatro de Huma, é a única presença masculina depois da morte de Esteban. Entretanto, tudo converge para nortear a obra de energia real e jamais racionalizar o pensamento feminista, conceito sensato e habilidosamente nulo nas obras desse diretor. O estilo de Almodóvar não permite o subjugamento dos homens pelas mulheres.













Outro aspecto impressionante é a capacidade pouco comum que Pedro Almodóvar possui de misturar humor dramático, apelativo e sofisticado, e o melhor exemplo se encontra quando Manuela diz a María: Como um homem com um par de seios pode ser tão machista? com o drama mais puro: O sucesso não tem sabor nem cheiro. Quando a gente acostuma, é como se não existisse., diz Huma a Manuela certa hora, dentro do carro (outra clara referência ao pequeno discurso de Davis como Margo Channing num contexto parecido). Dessa maneira o diretor cria paralelismos sem medo de dimensionar a história dentro de um amplo mundo de possiblidades reais.


















As atuações são magníficas. Cecilia Roth faz uma mãe forte sem afetações heróicas. A consagrada Marisa Paredes é a personagem mais complexa do filme, ela mostra com esplendor que sua vida de sucesso no show business não pode competir com a problemática vida pessoal, e a situação nevrálgica que é imposta a atriz quando descobre que Esteban morreu tentando pedir um autógrafo direciona Huma para um lado ainda mais obscuro de sua vida particular. Antonia San Juan é extraordinária com sua Agrado, o seu cuidado de dar vida a um travesti que exala luxo, simpatia, bom humor, uma certa pureza (chegando ao ápice no seu monólogo no teatro: Porque nós ficamos mais autênticas quanto mais nos parecemos com o que sonhamos que somos) e o principal, longe do caricaturesco, é digno de prêmios, claro que tudo apoiado no inspirado texto de Almodóvar. Penélope Cruz prova sua extrema habilidade em encarnar qualquer papel, aqui dando apropriadamente a María um ar frágil, delicado e incrivelmente descontraído até certo ponto, e Toni Cantón roubas as poucas cenas em que aparece. Altivo e debilitado, ele emite com destreza pena ao espectador. Apenas Candela Penã não faz justo ao restante do elenco, sua personagem é logo esquecida.

Pedro Almodóvar vem comprovando sua indiscutível importância na Sétima Arte, afinal, depois de 'Tudo Sobre minha Mãe, ainda tivemos Fale com Ela, Má Educação e Volver, todas obras imponentes em seu mundo universalmente particular. Abraços Partidos, seu mais recente trabalho, é uma obra menor, mas que ainda não chega a ser um erro na carreira do diretor (como Invictus na de Eastwood). Pressinto que muitas coisas boas ainda virão nas mãos desse espanhol.


1 comentários:

Victor Tanaka disse...

Assisti ontem e adorei!