Recent Posts

18/11/2011

A Pele que Habito (2011)

Parecia que Pedro Almodóvar, com uma de suas obras-primas Fale com Ela, já havia atingido o grau máximo de bizarrice canalizada em paixão e cinema. Parecia. Com a sua mais nova obra, A Pele que Habito, Almodóvar nos entrega umas das histórias mais absurdas já vistas na telona; e dentro de sua filmografia, uma obra genial.

Robert Ledgard (Antônio Banderas) é um cirurgião plástico visionário: além de realizar transplantes de sexo, o médico é adepto à transgênese, que visa transformar o corpo humano geneticamente, mais ou menos da mesma forma que nós já fazemos com as frutas e os animais. No caso de Ledgard, a sua obsessão é fazer com que a pele humana se torne bem mais resistível do que já é, ao ponto de se tornar imune às picadas de mosquito e queimaduras. Esta última explica a sua obsessão: a mulher do médico foi completamente carbonizada por causa de um acidente de carro, e depois de um tempo, se matou por não aceitar a aparência inumana. Alguns anos após a tragédia, Ledgard trabalha intensamente na pele de Vera Cruz (Elena Anaya), para torná-la imune e sobre-humana.



O filme se desenrola, basicamente, por meio de um suspense crescente, que vai mostrando pouco a pouco (num vai e vem temporal) as peças do quebra-cabeça grotesco que é o filme de Almodóvar. Esse suspense não é algo comum nas narrativas do diretor a qual estamos acostumados a ver. Até mais ou menos meia hora de filme ficamos quase que completamente à parte da real intensidade e da força motriz dos personagens. Depois desse tempo de muito estranhamento, um acontecimento um tanto esquisito e aparentemente deslocado da história impulsiona a película para a sua real faceta, que ainda vai se desenrolar aos poucos; a partir daí, A Pele que Habito se torna um baque amedrontador e insano, que penetra em nossas mentes como algo inimaginável, mas paradoxalmente bastante plausível.

Almodóvar é mestre em criar novas perspectivas, ou pelo menos, moldar assuntos já vistos ou imaginados com seu toque único, o que acaba por tornar o que vemos na tela aparentemente algo completamente original. Isso acontece devido à habilidade do diretor em injetar na sua história, e principalmente, nos seus personagens, paixão e veracidade. Esse filme dá certo, em grande parte, porque os personagens acreditam em seus atos. O diretor não faz uso de nenhum recurso narrativo mirabolante para elaborar a sua obra. Pelo contrário, o agonizante suspense inicial e as duas perspectivas narrativas de um mesmo acontecimento (crucial no filme), por exemplo, são recursos de fácil identificação, já vistos várias vezes. A obra funciona porque a mise en scène é espetacular, por mais absurdo que pareça ser os atos dos personagens. Seja na dureza de Marília (Marisa Paredes), na convicção de Robert, na transformação de Vera, entre muitos outros elementos, tudo é sinistramente real, puro e elegantemente vulgar.



O próprio roteiro é ao mesmo tempo um desafio e uma prova de que Almodóvar tem um controle artístico assombroso sobre o filme. Muitos aspectos não nos são explicados sobre certas transformações humanas que ocorrem (que não irei detalhar aqui, apesar da vontade ser grande). Em alguns momentos, o filme me lembrou o romance clássico de Mary Shelley, Frankenstein; até hoje ninguém sabe como o Dr. Frankenstein deu vida ao monstro mais famoso da Literatura, entretanto, dentro daquela narrativa, pouco importa como o monstro foi criado, mas sim o porquê dele ter sido criado e as consequências desta criação. Um processo semelhante se dá no filme: é a paixão destrutiva e 'irracional' do personagem de Banderas que dá o gás necessário para a lógica narrativa. Os outros personagens principais nunca deixam de estar em sintonia com a tenacidade dessa teia aloprada: a empregada e mãe do cirurgião, Marília, (aquele olhar de Paredes é devastador!), e o 'experimento' do médico, Vera Cruz (em boas mãos com a bela e intensa Anaya - a sua semelhança com Penélope Cruz é inegável), surgem como peças fundamentais para a megalomanicidade imperturbada de Ledgard, interpretado com muita competência por Banderas.

O estilo que nós é tão familiar da estética visual de Pedro Almodóvar está na obra, mas ganha alguns contornos diferentes. Boa parte do filme se passa em uma mansão suntuosa, com várias pinturas nas paredes denunciando os gostos do cirurgião, mas é um lugar um tanto lúgubre e isolado. As lindas canções em espanhol dividem espaço com as trilhas de suspense novelescas, e quase não há cenas externas à luz do dia, tornando toda a atmosfera bastante condizente com os temas abordados. A cultura espanhola de raiz é vista apenas discretamente, entretanto, numa bela sacada, o diretor usa um segmento cultural para construir uma sequência que leva o filme para a frente. A fotografia, como em qualquer outra obra desse diretor, é impecável; mas, ao contrário da claridade que predomina em seus outros filmes, nesse temos um tom mais escuro e a iluminação se torna mais delicada e poética, tendo seu ápice quando o 'casal' Ledgard e Cruz estão na cama. Por outro lado, ver um trabalho de Almodóvar cheio de cenas em laboratórios e com discursos científicos soa, num primeiro momento, um tanto quanto estranho. Porém, o diretor não pisa em ovos: novos territórios no que concerne às atitudes humanas são explorados com perspicácia, sem soar vazios ou forçados. Felizmente Almodóvar foge de explicações científicas convencionais e 'hollywoodianas', se não o fizesse, perderia a sua essência.

E é essa habilidade, de agregar algo sempre novo com a sua tradicional paixão pelo ser humano e o que ele é capaz de fazer, que faz com que Almodóvar seja sempre um diretor inovador, cáustico, apaixonado e principalmente, verdadeiro. Assim como acontece com a personagem de Paredes, a loucura de Almodóvar parece vir de suas entranhas. Uma loucura de moldar o grotesco, de realizar o irrealizável, tanto porque vem dos cantos mais espinhentos e assombrosos da mente humana.