E foi essa perda de identidade, essa crise e essa multiplicidade que me encharcaram nessa semana ao ver 10 filmes contemporâneos (dois eu revi) na mostra ‘Bem Vindo ao Cinema Contemporâneo’, realizado pelo grupo de pesquisa e extensão Grav, da Universidade Federal do Espírito Santo.
O primeiro, ‘A Ponte das Artes’, de Eugène Green, evoca uma crise de identidade do protagonista, que se vê cercado por armadilhas em sua vida, desde a namorada até o amigo que rejeita poemas de Michelangelo, dando contornos nítidos a uma França que, pela mão do diretor, se transformou em caricatura da intelectualidade que abundou personagens do cinema durante esses mais de 100 anos de cinema. O que é palpável ali, não só para o personagem, mas dolorosamente também para o espectador, é a total crise do real e a compreensão de que esse ser em crise só será preenchido e seguirá vivendo a partir de uma ilusão, que acaba se tornando o aspecto mais real e lúcido da vida, não só da vida dele, mas da nossa também. Em uma cena, presenciamos um público assistindo a uma peça de teatro Nô (da tradição japonesa) e só temos acesso às emoções que esse teatro emana a partir dos olhos emocionados das pessoas que o assistem. Nós, a outra platéia, não temos acesso ao teatro, a não ser pela trilha que é ouvida; é negado a nós uma parcela do real que nunca nos foi negada pelo cinema tradicional, pelo cinema que dá tudo e não esconde nada (mas que nunca perde o seu valor, o que seria de nós sem os clássicos americanos, por exemplo?). Essa ‘representação de um estado de coisas’ é uma representação que, veja bem, não é incompleta no significado mais didático da palavra, mas é uma representação que reeduca nosso olhar, nossas sensações. É aquilo que o cinema pode realizar também, que irá permear todos os outros filmes.
‘Na Cidade de Sylvia', de José Luiz Guerín, temos um homem que parte em busca de uma mulher que conheceu há seis anos, numa cidade da Espanha. Boa parte do filme mostra esse homem sentado em um café, observando as pessoas sentadas em sua volta e desenhando algumas mulheres que estão lá. Os diálogos dessas pessoas se tornam apenas ruídos, não temos acesso a nada de ‘concreto’ que elas estão dizendo, nosso olhar repousa em um rosto, em uma árvore ou em um copo de cerveja que cai na mesa e na garçonete que a limpa. Esta aí outra vez essa reeducação do olhar, do meditar, a todo o momento, sobre o que é importante ser visto na tela, ser sentido pelo o que emana da tela. Parece-me aqui que o diretor, apesar de obviamente guiar o nosso olhar, principalmente na seqüência que o homem começa a seguir uma mulher que acha ser Sylvia, nós dá também margem para apreciar outras coisas no caminho: uma mulher gorda que chuta uma garrafa, uma pichação na parede. Trumam Capote, em suas memórias ‘Os Cães Ladram’, ao escrever que gostaria de realizar um filme, fala: “Como notas dissonantes de um piano, a câmera se movimenta em traços rápidos, e percebemos eventos que nossos olham nunca notam: uma pétala de rosa caindo, um quadro torto na parede.” Um filme como esse é uma pintura, onde tudo pode ser apreciado com a mesma importância, e só cabe ao espectador, a partir de suas convicções, se interessar ou não por esse ou aquele aspecto. Toda essa minha falácia pode ser resumida nessa bela escrita de Filipe Furtado, em sua crítica do filme: “A cidade de Sylvie sugere outras vidas, outras histórias, sugere um filme como verdadeiro organismo vivo; o extracampo ressurgindo com toda força, cada rosto, cada construção sugerindo um passado e um futuro, um maravilhamento do instante e uma existência para muito além daqueles planos.” É sempre o além, o que se projeta, o que se sugere (como no caso de cena do teatro Nô citada cima) que em minha opinião serve como força motriz para um redesenhamento de um cinema com possibilidades infinitas.
E falando em possibilidades, o que dizer do plano-seqüência final do filme ‘Através das Oliveiras’, de Abbas Kiarostami? Se durante toda a projeção nos foi dada o prazer da intimidade de um casal (ou quase-casal, ou nunca casal), apesar das barreiras e códigos (palavra que o cineasta e crítico Rodrigo de Oliveira ressaltou muito bem nessa semana) que não é fornecido para o espectador, esse plano final é um distanciamento explícito dessa intimidade para que, outra vez, o espectador se sinta ao mesmo tempo desconfortável e livre para traçar suas próprias conclusões (que nunca são conclusivas). Esses códigos e barreiras, que descem em nossas gargantas como uma bebida estranha e deliciosa, criam um ambiente novo, reinventado; cabe ressaltar que eles não precisam ser fornecidos, eles servem, muito pelo contrário, como uma força potencializante desse cinema contemporâneo, nas palavras de Andréa França sobre o cinema de Kiarostami: “a força do seu cinema é inventar operações poéticas complexas para dizer um real múltiplo,um real que não pode ser reduzido. Reduzir significaria enfraquecê-lo, despotencializá-lo.”
Esse ‘real que não pode ser reduzido’ também se dá no documentário ‘Catadores e Catadoras’, da cineasta francesa Agnes Varda. Apesar da cineasta-documentarista focar seu objetivo em um objeto bem específico, isso não quer dizer que ela não nos forneça outras presenças e incertezas, que é principalmente provindo dela mesma, que se auto insere no documentário para lá se misturar e criar novas dimensões que, em um primeiro momento, é um corpo estranho nesse formato tão discutido e polêmico chamado documentário. Varda não quer apenas afirmar o que procura objetivamente, ela também quer se auto afirmar, ainda que saiba que isso nunca será inteiramente possível. Lidar com o ‘eu’ foge do enquadramento afirmativo do lidar com o ‘outro’. Eu não poderia concordar mais com a cineasta Ursula Dart, quando esta afirma: “Ele [o filme] vem repleto de um delicioso auto biografismo, com um retrato pessoal (com direito a moldura e tudo). E não falo isso porque a vemos mostrar suas raízes de cabelo brancas, sua pele de suas mãos (que a fazem acreditar que seu fim está próximo), sua casa, seus gatos, mas porque ela nos deixa ver o que seus olhos realmente vêem.” E o que o documentário se não um olhar particular?
O particular também se insere em ‘Shara’, de Naomi Kawase. Através de um fiapo de história (quase todos esses filmes citados tem apenas fiapos de história, ou pelo menos o que estamos acostumados a ver como história), Kawase nos leva ao íntimo de uma família de uma cidadezinha no Japão. Com a câmera trêmula servindo de personagem, ela nos leva a ver o que normalmente não vemos, por esquecimento ou acomodação. A diretora nos guia através desses ‘tempos mortos’, que aqui é um termo que não mais se aplica (se é que algum dia ele se aplicou, afinal são tempos vivíssimos e essenciais), para um olhar mais íntimo, mas ao mesmo tempo criando a dualidade chave desse filme (e de todos os outros), que é a atenção/dispersão, termo bem posto pelo pesquisador Sidney Spancini em seu texto ‘Atenção, dispersão e fluxo’. Todos os componentes dos quadros são de igual importância e formulam essa idéia de quadro íntimo da cineasta, com todos os detalhes, tantos que inevitavelmente dispersam o espectador. O que importa aqui não é o tradicional começo, meio e fim, mas uma visão ‘maior’ e mais sensível de vidas que simplesmente vivem.
Se a ‘câmera na mão’ é muitas vezes o veículo de Kawase, em Millenium Mambo’, de Hsiao-hsien Hou, usa-se de enquadramentos meticulosos para englobar uma narrativa de planos que formam uma figura de memória, onde o espectador presencia o desdobramento de um casal em crise através da ‘estética do fluxo’ que Spancini escreve em seu texto, “na qual a experiência espectatorial se moldaria a partir das ambiências e sobrevalorizações da dimensão sensorial”. Moldado pelo uso abundante de música que remete aos ambientes de casas noturnas, o filme não deixa de se ‘focar’ na crise dos protagonistas, mas também nos permite viajar por tudo que está no plano, seja no aspecto visual ou sonoro, como o barulho do cortinado na passagem da porta do apartamento que a todo o momento é tocado pelos personagens raivosos, ou como o cineasta e pesquisador Erly Vieira Jr. ressaltou, pela chama de uma vela enquanto o casal (ou apenas um deles) está em cena. Sobre isso, Spancini escreve: “Suas construção cênicas privilegiam uma riqueza de elementos e espaços, criando camadas de objetos e ações nas quais a ação da cena se perde dentre vários outros espaços possíveis dentro da mesma cena”. Outro aspecto interessante de se notar é uma não necessidade de colocar os personagens sob uma luz de análise psicológica determinista, como se faz muitas vezes no cinema hollywoodiano. Acredito que esse fluxo do filme não permita essas análises mais ‘aprofundadas’, deixando mais uma vez para o espectador, cercado pelo tom melancólico de uma Tawain sem cadeira na ONU, os julgamentos, se ele estiver disposto a fazer. Ruy Gardnier também comenta sobre essa ‘psicologia dispersiva’: “É um cinema dos afetos, um cinema profundamente espinozista, que não faz a separação por gêneros ou o personagem por suas características psicológicas, mas antes de tudo por relações de velocidades, contigüidades, amor e fobia, capacidade de afetar e ser afetado. Vicky trepa, Vicky dança, Vicky fuma (haxixe?), Vicky está triste, Vicky vai para o Japão... antes isso do que o trauma psicológico infantil tão comum ao atual cinema americano, tão moralizante, tão burro... Hou Hsiao-hsien dá a seus personagens essa liberdade de se movimentar sem precisar de um passado”.
Finalmente aqui temos um diretor americano, Gus Van Sant, com seu ‘Gerry’. Dois amigos seguem uma trilha em um deserto para atingir algum objetivo (que nunca nos é revelado), depois de um tempo eles resolvem simplesmente voltar, já não querem mais aquele objetivo, porém se perdem no deserto. É um filme de planos bem longos, basicamente com os dois andando pelo deserto e de vez em quando engendrando algumas conversas entrecortadas pelas cenas, outra vez aquela história de códigos que o espectador não tem acesso. Eu comentei sobre os tempos mortos, que Hitchcock tinha horror, pois para ele o filme precisa apenas das cenas chaves para que a narrativa se desenvolva. Mas agora, quando temos logo no começo do filme uma cena longuíssima dos dois personagens indo de carro para o deserto, sem nenhuma conversa, sem ‘nada de importante’, toda essa significação de tempo morto é jogada por terra, simplesmente porque o tempo morto não existe mais aqui (nem em nenhum dos outros filmes citados). Em um filme ‘tradicional’, a mesma história contada em ‘Gerry’ teria um objetivo diferente, não haveria essa primeira seqüência, no máximo dez segundos de viagem de carro e já o corte para o deserto (ou em outra possibilidade, algo de ‘muito importante’ acontecendo durante a viagem). Mas a proposta de Van Sant não é essa. A proposta dele é de nos levar a esses confins como uma experiência sensorial, de meditação e análise, de perda do que é familiar para, como Erly Vieira Jr. ressaltou em seu texto ‘Sobre Corpos e Desertos’, investigar uma “experiência-limite, à qual os corpos são impelidos pelo devir que os motivou a empreender o périplo inicial do deserto. (...) Trata-se de uma experiência que não tem outro fim senão em si mesma”. Outro olhar nós é pedido para essa proposta.
O não-acesso também está no filme 'Bom Trabalho', da francesa Claire Denis. Ainda que a película tenha a narração em off do protagonista, as suas motivações para as suas ações não nós são totalmente revelados, nota-se aqui uma ‘desconstrução’ ou ‘reinvenção’ até mesmo de uma das técnicas mais básicas e antigas do cinema falado. Se em ‘Gerry’ os planos se afastam dos personagens, tornando-os parte orgânica do deserto e desertando a concepção que usualmente temos do papel do personagem na tela, no filme de Denis os planos muitas vezes ditam um ritmo com os personagens, que segundo Erly Vieira Jr, “sobrevaloriza essa dimensão corpórea/material do cinema para dali extrair uma construção narrativa em blocos que se encadeiam a partir dos afetos que deles emanam”. Erly fala em “montagens oceânicas” dos planos, quando, por exemplo, são mostrados os exercícios dos soldados na Legião Estrangeira moldados pelo ritmo das montagens, a câmera aqui fica mais íntima e menos ‘rígida’, diferente do que acontece com a câmera distante e às vezes mais ‘engessada’ de Gus Van Sant.
Finalizando a mostra, vimos ‘Luz Silenciosa’ de Carlos Reygadas e ‘Mal dos Trópicos’ de Apichatpong Weerasethakul. Ambos os filmes lidam com o sagrado, mas de formas diferentes. No filme de Reygadas, um homem de família, de uma religião protestante e bastante ‘conservadora’, está em crise por amar outra mulher e não saber lidar com a situação. Trilhando mais ou menos o caminho do diretor sueco Carl Theodor Dreyer com seu filme ‘A Palavra’, o diretor faz uso de planos longuíssimos, poucas cenas, diálogos e movimentos lentos que se estendem (mas genialmente nunca se arrastam) por 145 minutos. É uma obra grave, solene, sem pressa. O plano-sequencia inicial filma calmamente o amanhecer (uma das cenas mais belas que já vi) e cria uma espécie de ‘simbiose incompleta’ entre homem e natureza. Lucas Schuina, em seu texto ‘Os Labirintos da Alma’, diz que “é como se a câmera filmasse o homem se movimentando em uma natureza mística, mas nem sempre acessível a ele”. No final temos uma experiência literalmente espiritual, ou transcendental, ou até mesmo simplesmente religiosa, que emana, como Schuina escreve, de duas forças: “o desejo humano e a vontade divina”.
O filme de Apichatpong também se ‘enquadra’ nessa experiência mística. Para o espectador, o filme se torna menos palpável na segunda parte e infinitamente mais sensorial, seja pelas construções do filme ou pelos códigos inacessíveis (que praticamente se tornam a mesma coisa). No debate desse último dia, Rodrigo de Oliveira tocou um em ponto bastante interessante: a ‘morte’ do cinema, já falado por Godard. Ele fez um paralelo dessa ‘morte’ com as representações imagéticas que Apichatpong faz dos símbolos de sua cultura tailandesa, numa espécie de nova abordagem de mostrar algo que o cinema ainda não mostrou, mesmo depois de mais de 100 anos de existência. Esse mesmo paralelo com a ‘morte’ é feita com o filme de Reygadas, onde o diretor procura um grupo de pessoas que vivem sob a condição de uma religião menos popular e conhecida para contar a sua história. Seria o cinema correndo atrás de sua própria sobrevivência?
Em um debate da revista online Contracampo, o já supracitado Ruy Gardnier comenta sobre o tipo de narração visto nos filmes que seguem essa linha da dos comentados acima, dizendo que esse tipo de filme é “narrativo no sentido de que esses filmes te dão personagens, te dão uma intriga, te fazem acompanhar alguma coisa que estamos acostumados a entender como narrativa, e uma maneira típica de ver um filme. Naturalmente, eles vão dinamitar essa estrutura, mas vão se aproveitar dela primeiro”.
Esta aí um dos maiores pontos do cinema contemporâneo, ou pelo menos desse cinema contemporâneo: narrativa dinamitada que se utiliza de códigos para contar sua história (alguns identificáveis pelo espectador, outros não) que surge a partir dessa dita estética do fluxo, que não permite tradicionais esquemas de narração e se insere nos cantos da mente e da alma, naqueles lugares que a gente quase nunca acessa, ou acha não acessa. Esse tipo de narrativa, escreve Andréa França, é mesclada com a “crise da crença em um mundo coerente e ordenado, crise da crença de que uma ação pudesse efetivamente mudar uma situação de mundo. É toda uma realidade dispersiva que surge, onde a relação dos personagens com o que lhes acontece é de indiferença ou mesmo estranhamento”.
“Toda arte é ao mesmo tempo superfície e símbolo. Os que vão abaixo da superfície o fazem por sua conta e risco”. Oscar Wilde.
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