O maior problema que muitos não conseguem encarar é a questão da estrutura do filme. Essa estrutura não é linear e nem tradicional, esqueça então que você estará vendo algum filme ‘certinho’ de Hollywood; tanto é que A Árvore da Vida ganhou a Palma de Ouro em Cannes, o mesmo prêmio que filmes como Tio Booonmee, Que Se Lembra das Suas Vidas Passadas e Elefante levaram para casa. Até mesmo lá na década de 50, mais precisamente em 1955, Marty também iria ganhar esse prêmio e que, apesar de ser um filme tradicional no que concerne a estrutura narrativa, abordou temas mais profundos que estavam permeando e iriam permear ainda mais o cinema hollywoodiano. Cannes, ao contrário do Oscar em várias ocasiões, geralmente sabe o que está fazendo.
A narrativa do filme do Malick se estrutura através de um conflito clássico familiar no centro, a origem da Terra até os dinossauros no início e o fim dos tempos no final, não necessariamente nessa ordem. O conflito familiar é gerado principalmente por Sr. O’Brien (Brad Pitt), um chefe de família durão que subjuga a sua mulher, a Sra. O’Brien (Jessica Chastain), e educa com dureza e coerção os filhos, principalmente o mais velho, Jack (Hunter McCracken). O conflito neste núcleo familiar não é nada fora do comum, nada que na tenhamos visto no cinema ou presenciado e /ou vivido nós mesmos. A diferença está em como Malick estrutura esse conflito, assim como a diferença ao mostrar o Big Bang e o Fim dos Tempos está na maneira em como o diretor os mostra, e não nos acontecimentos em si (afinal, já vimos cenas do Big Bang e do possível Apocalipse milhares de vezes pelo Discovery Channel).
Malick não quer falar do significado da vida, nem quer falar o porquê de estarmos aqui (não, ele não tem essa resposta). Ele também não quer argumentar se Deus existe ou não, e essa questão ‘divina’ é o que infelizmente mais distrai os espectadores da bela proposta do diretor. A Árvore da vida não é apologia cristã, nem a qualquer outra religião e nem ao ateísmo.
O filme vai passeando por aquelas três ‘partes’ que eu mencionei acima: se no começo o filme mostra a família e seus problemas para depois dar um pulo para o futuro com Jack já adulto e melancólico (Sean Penn), mais para a metade do filme presenciamos uma grande seqüência mostrando alguns acontecimentos que fizeram parte da origem do mundo (embalados pela gigantesca ‘Lacrimosa’), e nessa seqüência temos parte da origem das primeiras células até a chegada dos dinossauros. Voltamos então para o conflito familiar. As brigas entre pai/filho e marido/mulher são clássicas, óbvias até, mas o filme as torna muito mais incômodas e por isso mais verossímeis, seja pelos cortes bruscos, porém incrível e paradoxalmente suaves, de uma cena para a outra (há muitos desses cortes), seja pelas poucas falas dos personagens ou até mesmo pelos acontecimentos em si, que apesar de banais (ou talvez por isso mesmo) criam uma significação orgânica imensa para o espectador, pelo menos se este se lembrar da sua época de infância. Malick aborda esses conflitos do dia a dia de uma maneira diferente, passando com a sua câmera pelas arestas das coisas, por aquelas áreas menos lembradas de nossas vidas enquanto crianças, porém muitas delas as que mais nos afetaram, daí a organicidade. O diretor faz muitas vezes uso apenas da expressão facial dos personagens, ou circunda o lugar em que eles habitam, dando grande importância a tudo o que está acontecendo na tela, sem formatar tradicionalmente um começo, um meio e um fim para os conflitos; as coisas simplesmente se revelam das formas mais naturais possíveis, algumas mais lentas, algumas mais rapidamente. A passagem de tempo não importa muito, pois tudo está ligado, cada ação e reação fazem parte de um todo, cada ação e reação são importantes, pois eles ditam o mundo, assim como o mundo dita a si mesmo, apenas sendo.
É provavelmente esse ‘apenas ser’ do mundo que mais me encantou em A Árvore da Vida. O filme de Mallick é sobre o Uno (e aqui eu posso estar ou não falando de Deus, não importa), é sobre o que une a todos, seja lá qual credo, raça, cultura etc. É um filme que mostra tudo apenas mostrando partes, relances de vida, e é justamente essas partes e relances que formam o todo, que não são somente o todo do filme, mas o todo do que existe. O que o diretor nos propõe é que nós nos desprendamos de noções como o passado, o presente e o futuro (ironicamente nos mostrando justamente o que entendemos como 'passado', ‘presente' e 'futuro' durante a projeção, só que mostrando esses tempos de uma forma mais solta e sem muitas amarras, indo e vindo sem um controle muito rígido, logo os tempos se tornam mais orgânicos, mais ‘reais’). Numa concepção 'maior' de existência, o que existe é o que existe, o que é simplesmente é, e pronto (sim, existe muita filosofia na obra). Com Deus ou sem Deus, ou seja lá no que você acredita, a vida está aí e não há muita coisa que possamos fazer a respeito, a não ser amar ‘cada folha’, ‘amar ao próximo’ e ‘seguir o caminho da Graça’ (e quem disse que esses preceitos são apenas cristãos? Há mais interpretações errôneas nessa narração em off do filme; algumas vezes a narração derrapa mesmo por ser muito ‘explícita’, mas ela continua não ditando nenhum valor, seja ele religioso ou não). A construção narrativa da película, que não tem nada dessa ‘insuportável’ complexidade estrutural que muita gente vem comentando (pelo menos nada que outros filmes já não tenham mostrado, como 2001 – Uma Odisséia no Espaço e 8 e Meio de Fellini), é uma construção que, apesar de não ser apoteótico no sentindo felliniano e até a la Lars Von Trier de ser (falarei um pouco dele e de sua Melancolia daqui a pouco), nos leva para uma imersão de liberdade extrema, apesar das dúvidas que provavelmente irão aparecer. Entretanto, é bom deixar claro que essas dúvidas não são propriamente geradas pela construção narrativa do filme, mas pelo próprio conteúdo que ele busca suscitar e que, obviamente, irá nos levar para a maior das perguntas da humanidade: de onde viemos? Para onde vamos?
Eu li a respeito de algumas comparações entre A Árvore da Vida e Melancolia e realmente durante o filme eu me lembrei do último algumas vezes, porém mais mesmo por uma mera questão de estética. No filme de Lars Von Trier também temos a questão do englobamento do mundo inteiro (apesar do diretor se focar apenas em uma família), já que outro planeta está vindo para chocar-se contra nós. Entretanto Melancolia, assim como outros filmes desse diretor, é antes de tudo pessimista, em que o mundo e as pessoas são hostis, em que o mundo é um lugar desprotegido e por muitas vezes apático, derradeiro em sua desgraça. O filme de Malick não é nada disso. Claro que existe a tragédia, existe o ‘mal’ no filme de Malick, porém as questões pessimistas também estão integradas em um todo, logo não faz sentido apenas um foco, um ditame. São filmes com essências diametralmente opostas. Talvez outro paralelo que poderia ser feito seria entre a melancolia de Jack adulto e da personagem de Kirsten Dunst, mas enquanto a situação de Jack é somente mais uma questão em meio a um infinito de questões na formação do mundo, a situação da personagem de Dunst é o grande vínculo com o mundo totalmente infeliz e caótico de Trier.
E é por isso que eu comentei sobre a ‘liberdade extrema’ do filme. Enquanto Trier nos encurrala em uma situação específica para ditar uma ordem imbatível, Malick nos propõe ver ‘tudo’ da forma mais natural possível. O conflito familiar foi apenas uma questão de ter que escolher algum conflito para filmar; qualquer outro conflito humano poderia ter substituído o daquela família, desde que obviamente o diretor se valesse da mesma estrutura para organizar a obra. Poderia ter sido o conflito em uma família mais pobre, em uma mais rica, numa empresa, favela ou escola. Qualquer um desses conflitos inevitavelmente faria parte do todo, parte da vida e do mundo.
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