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04/04/2011

Uma viagem

Como era irritante querer ler naquele dia chuvoso. Provavelmente eu iria ficar um tempo considerável no ponto esperando o ônibus, e nessas ocasiões eu sempre aproveitava para adiantar alguma leitura, assim eu tinha impressão que não estava perdendo tempo. Perdendo tempo. Mas naquele dia chuvoso era impossível, a marquise do ponto estava lotada e eu precisava segurar o guarda-chuva... Que situação irritante! Entenda-me bem: quando estou dentro do ônibus eu não sento no lugar reservado para os idosos por maldade (mesmo que às vezes eu tenha ódio de alguns deles pela falta de educação), e nem é para afirmar meu status de jovem saudável que tem toda a vida pela frente, nada disso, até porque eu não me sinto jovem e muito menos saudável. Eu não tenho toda a vida pela frente, entenda isso. Entenda-me bem: Eu sento em um daqueles lugares porque eu quero adiantar a minha leitura, só por isso! São quase duas horas dentro do ônibus (duas na ida e duas na volta). É tempo demais. Porque os idosos não tem compaixão pela minha sede de conhecimento e me deixam quietinho lá? Eles irão morrer se ficarem em pé? E a maioria não fica nem 20 minutos lá dentro! Sem contar aqueles que entram em um ponto e saem no ponto seguinte! E tem mais: porque um homem de 70 anos pegaria um ônibus às seis e meia da manhã? Eu não consigo entender isso. Cadê os filhos dessas criaturas para ajudá-los? Depois dessa vida inteira, eles ainda precisam sair às seis da manhã? E para ir aonde afinal? O destino dos idosos é algo que sempre me intrigou. Se eu chegasse aos 70 anos, eu já queria ter viajado para todos os lugares nas mais variadas horas possíveis. Aos 70 anos, eu gostaria de uma cama quentinha e um chá de limão. Aos 70 anos eu não preciso mais ler um livro por semana, mas aos 20 eu preciso, entenda isso. Mas naquele dia, os idosos ainda não tinham aparecido na minha vida. O problema era a chuva e a marquise lotada. Meu livro na bolsa, aquele desperdício doía. Em cada minuto que passava eu perdia uma linha que poderia mudar minha forma de pensar, de agir, de escrever, meu futuro indo embora.

Havia, ao lado da marquise, um vendedor de bombons. Era um homem com seus quarenta e poucos anos, moreno claro, forte, cabelo esbranquiçado e traços marcantes, muito bonito. Sentada ao lado estava a sua filhinha, em torno de dez anos, também morena, cabelos enrolados e sem olhar de pena. Sentadas na marquise, ocupando o meu lugar, havia duas mulheres horrorosas, gordas, cheias de parafernálias e com vozes grosseiras. Duas surpresas: elas interagiam com aquele vendedor e estavam esperando o ônibus com ar condicionado. Nem eu tinha dinheiro para aquele tipo de condução. Elas estavam ocupando o meu lugar, elas não estavam lendo, estavam interagindo com aquele pai maravilhoso e ainda iriam embora usando a melhor condução da cidade!

- Quanto é o bombom? Perguntou uma delas, qualquer que seja, naquele ponto aquelas duas já eram uma mesma massa, insignificante para mim.

- Um real cada. Só um real.

A voz daquele vendedor era deliciosa, como moldada para sobreviver naquele ambiente hostil e indiferente.

- Tem de que? Uma parte daquela massa perguntou.

- Tem de coco, brigadeiro, morango...

- ESSE ÔNIBUS QUE NÃO PASSA! OLHA ELE! ELE LÁ! AH, NÃO É NÃO!

- Uva, maracujá, amargo...

- CADE ESSE ÔNIBUS? NÃO É AQUELE NÃO, MÃE? MÃÃE?

- ONDE FILHA, ONDE? NÃÃO!

- Eles estão uma delícia, eu mesmo faço o chocolate com leite...

- NÃO SEI, ELA FOI ONTEM LÁ, ELA ME LIGOU!

- TE LIGOU? ONTEM? NO CELULAR?

- FOI!

- Então, só um real cada.

De onde vinha aquele homem? Pessoas bonitas que trabalhavam informalmente sempre me atraíram. Eu adoro criar histórias para esses príncipes e princesas que foram enxotados de seus castelos pela feiticeira malvada. Aquele homem me pareceu mais nobre do que a maioria das pessoas que eu conheço intimamente. Havia um ar de placidez e organização em todo aquele processo de feitura e venda de bombons junto à capacidade de lidar com a sordidez dos outros que me fascinava realmente. Eu nunca seria capaz de fazer tudo isso. Numa situação como aquela, eu já teria ofendido aquelas mulheres da maneira mais mesquinha que pudesse. Sem contar que eu nunca saberia organizar uma barraquinha de bombons tão apaixonadamente, uma loja da Tiffany não poderia ser mais atraente do que aqueles bombons formando uma espécie de disposição natural, como um recife de coral. Eu não tenho o dom de organizar coisa alguma, de criar toda uma vida com base num amor inquestionável, inquebrável. Eu nasci para ler, para viver a história dos outros, para julgar os outros, para enfeitar os outros. É por isso que aquele dia chuvoso com a marquise lotada me irritava, é por isso que eu sento no lugar dos idosos. Não é por maldade, juro!

Gian Luca

1 comentários:

Dayane Pereira disse...

Que texto!
Que revelações de uma personalidade encantadora.
Eu também percebo as pessoas que trabalha informalmente, noto que com a educação e veleza (de alguns), poderiam estar em posições melhores na vida.
Eu tb leio em ônibus, mas detesto sentar no lugar de idoso, afinal, não sei da onde surge tanto idoso em qualquer horário.
Eu tb penso que com aquela idade, jamais ficaria pegando ônibus. Eu penso: com essa idade, eu quero ter no mínimo meu próprio carro, se não puder dirigir, alguém que dirija pra mim!
E a gente esta lá porque precisa trabalhar, precisa adquirir conhecimento, como vc mesmo citou.

Enfim..

(;