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19/01/2011

Revisitado

Lá havia um vilarejo
Onde não se vivia muita gente, é claro
Havia apenas uma igreja, um mercado, uma praça
Um cemitério, uma cadeia
E nenhuma livraria

Isso não era motivo de alarde para a população
A maioria se contentava apenas com o jornal diário
Ou com o caderno de hinos da missa dominical
Mas Cachinhos Dourados era uma leitora ávida

Ela já tinha lido todos os livros da pequena biblioteca do pai
E todos os outros de suas amigas:
Mary, Jane, Rebecca, Martha etc. etc.
E agora ansiava por mais aventuras
Que se passavam nas grandes mansões inglesas e irlandesas
Onde mulheres esperavam pelo príncipe encantado
Como desempregados esperam por uma ligação na sala de estar
Onde mulheres dedicavam-se a leitura e a pintura
Como as pessoas de hoje dedicam-se a carimbos e caixas

No vilarejo de Cachinhos Dourados
As mulheres não esperavam por nenhum príncipe
Cada uma já tinha um sapo de olhos esbugalhados
Gordo, careca e marrom como uma verruga
Nem liam, ou pintavam ou nem mesmo tocavam algum instrumento
A canção que saía pelas janelas das casas
Era o som das panelas, dos brinquedos e dos gritos
A pintura era o sangue escuro derramado no carpete
Ou alguma imagem do padroeiro daquele lugar

A única saída para Cachinhos Dourados era a leitura
Mas a biblioteca pública encontrava-se no vilarejo vizinho
E para chegar lá ela tinha que atravessar uma floresta
Que diziam estar cheia de maus espíritos, duendes e elfos
Nenhuma criança até hoje tinha ousado atravessá-la
Apenas os adultos iam e vinham
Trazendo alimentos, madeira e ferramentas
Mas obviamente nenhum livro

Numa bela manhã Cachinhos Dourados estava decidida a atravessar a tal floresta
Afinal, ela não era Mary, nem Jane, nem Rebecca, nem Martha etc. etc.
Ela era Cachinhos Dourados, uma heroína
A menina então preparou uma cesta de alimento
Vestiu seu melhor vestido de seda (afinal, como seriam as pessoas do outro lado?)
Penteou os lindos cachos e os prendeu com um lenço rosa
Partiu assim para a floresta como uma coruja
Sem falar com ninguém e com os olhos acesos

A floresta não parecia nada assombrada, pelo contrário
Por todo o caminho Cachinhos Dourados foi acompanhada pelo canto dos pássaros
E avistou famílias de coelhos saindo de suas tocas para a caça
Além de belas e cheirosas flores
Que ela acabou colhendo algumas
Para entregar a sua mãe como desculpa pela sua pequena fuga
Que idéia brilhante!

Depois de meia hora de caminhada
Que bela surpresa!
Cachinhos Dourados estava em frente a um adorável chalé
Um lindo chalé no meio da floresta!
Ele não era feito de doces, logo não poderia pertencer a uma feiticeira
O que poderia ser mais agradável?
Havia um lindo canteiro de rosas vermelhas
Da chaminé saía uma fumaça cinza
E na soleira da porta encontrava-se um pequeno carpete com a frase em escarlate:
Seja bem vindo (a)!

Ora, ela era então bem vinda naquele lugar extraordinário!
Cachinhos Dourados quase não podia acreditar na sorte que estava tendo
Deu então três batidas na porta
Mas ninguém respondeu ou veio atendê-la
Ela se lembrou da igreja de seu vilarejo nos dias de semana
Onde apenas um velho era encarregado da vigília
E nenhum fiel desesperado conseguia atendimento

Cachinhos Dourados bateu mais uma vez e a porta se abriu
Pela pequena fresta que se formou ela viu que o interior era ainda mais agradável
A chaminé estava funcionando como um trem
Ela entrou e seus olhos brilharam com tanto aconchego
Que lugar lindo para viver!
Que lugar lindo para ter uma família!

Três pratos de mingau estavam sobre a mesa da cozinha
Os dois primeiros estavam gelados como comida de hospital
Mas o terceiro, um pouco menor, estava quente e delicioso
Cachinhos Dourados tinha se lembrado da comida da avó
Aquela pobre e velha que tinha morrido careca e de boca aberta
Ela parecia tão estúpida naquele dia!

A menina viu três lindas cadeiras de mogno perto da viva lareira
Duas grandes, muito grandes, e uma média
Ela se sentou na cadeira menor e ficou observando a lareira por alguns minutos
Pensando nos novos livros que iria ler, nas novas aventuras, nas novas pessoas interessantes...
Quando Kaput!
Cachinhos Dourados estava ao chão e a cadeira partida ao meio
Que desgraça! Como ela iria consertar aquilo?
Seu pai havia ensinado marcenaria apenas para seu irmão mais novo
Era privilégio de um menino, como caçar ou viajar sozinho
Ela estava perdida, perdida!

Mas antes que pudesse pensar em alguma solução
Três ursos entraram no chalé segurando sacolas de frutas e verduras
Era obviamente uma família composta por pai, mãe e filho
Cachinhos Dourados chegou a pensar debilmente que poderia se esconder
Como fazia quando comia os doces da mãe
Mas a mãe urso avistou a menina, viu a cadeira arruinada e a pegou pelo braço
Quem é você? O que está fazendo na minha casa?

Ela tentou se desculpar
Mas sua voz foi abafada pelos berros do menino urso
Que gritava como uma mulher em trabalho de parto
E se debatia no chão como um epilético
Ninguém iria ajudá-lo?
Ela viu o pai urso se dirigir a cozinha e pegar uma garrafa de uísque
Ele bebia o líquido como um cachorro sedento
Suas pernas grossas apoiadas na mesa como duas colunas

A mãe urso presenciou toda aquela cena e se virou para a menina com um sorriso de escárnio
Não ligue para eles! Eles sabem como fazer, ela disse
Cachinhos Dourados estava mais triste do que aterrorizada
Aquele sorriso não pertencia aquele rosto
Cujos olhos estavam vidrados
E as narinas dilatadas como as de um cavalo
Meu filho é demente e meu marido é um alcoólatra
Eles são tão estúpidos quanto o resto de um pudim
Eu sou a única normal nesse lugar, ela disse
E o sorriso havia desaparecido como um kamikaze

A mãe parecia ter se acalmado depois de alguns minutos
O pai estava dormindo na cozinha mesmo
E o menino se mexia leve e silenciosamente como um recém-nascido
Cachinhos Dourados teve então a chance de se explicar
E o propósito de atravessar a floresta pareceu iluminar a fronte daquela coitada
Provavelmente ela nunca tinha ouvido uma história desse tipo!

Porque você gosta de ler?
(Meu filho nunca gostou de ler)
O que você gosta de ler?
(Eu lia romances ingleses quando menina)
Porque nenhuma criança jamais saiu do vilarejo?
(Elas são tão medrosas assim?)
Qual seu tipo mingau preferido?
(Talvez eu possa fazer mais para você)
Porque seu pai não ensinou a você a arte da marcenaria?
(Meu marido é um ótimo carpinteiro, mas ultimamente não consegue segurar nem a maçaneta da porta!)

Todas essas perguntas acalmaram Cachinhos Dourados
Então não havia nada a temer!
É claro que seu pai teria que fazer algo para ajudar aquela pobre família
Mas ela tinha certeza que ele o faria, ele era um homem tão bom!

Enquanto respondia as perguntas
A mãe urso conduziu Cachinhos Dourados para o andar de cima
Elas entraram em um quarto onde tocava uma música vinda de uma caixinha na cabeceira
Mas a menina nem ouviu qual seu entusiasmo em falar de sua maior paixão
E qual não foi a sua surpresa
Quando a mãe urso abriu uma porta no chão
E lá de dentro a menina conseguiu enxergar pilhas e pilhas de livros!

Havia uma biblioteca inteira ali! Ela não iria precisar atravessar a floresta!
E antes que Cachinhos Dourados pudesse perguntar se poderia...
Kaput!
Cachinhos Dourados foi jogada no compartimento secreto como uma judia
A porta se fechou e a última coisa que ela conseguiu enxergar
Foram as mãos inchadas da mãe urso fechando a porta delicadamente

Cachinhos Dourados olhou em volta e viu que o lugar era fracamente iluminado
Pegou então um dos livros como se fosse uma bíblia
E dali por diante nunca mais parou de ler.


Gian Luca

4 comentários:

Alexandre Rodrigues disse...

Muito legal o seu texto!!! Parabéns pelo blog. Abraço.

Crônica Mal.dita disse...

Olá.
Eu sigo o teu blog através da minha antiga página "Diario de Bordo do Fer". Gostaria que vc seguisse meu novo blog porque o que citei anteriormente vai ser desativado.
Meu novo blog está no endereço:
http://cronicamaldita.blogspot.com
Aguardo sua presença. Um abração.

Hugo Green disse...

Seguindo seu Blog!

Segue o meu:

http;//bloghugogreen.blogspot.com

Max William Morais disse...

Ao menos ela teve o desejo realizado – há custos, nem todos os finais são encantadores... Mas este não perdeu o brilho: ler é fascinante!