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06/05/2010

Desencanto (1946)


Antes de dirigir Lawrence da Arábia, Doutor Jivago e Ponte do Rio Kwai, três das maiores produções cinematográficas americanas já realizadas, David Lean tinha sua carreira concentrada em filmes britânicos, e foi nessa primeira fase, em meio a obras de gângsters e filmes noir produzidos durante a II Guerra, que ele dirigiu Desencanto. Baseado na peça de Noel Coward, o filme não tem nada a ver com o gênero pelo qual o diretor ficou marcado: o épico, mas em minha opinião, é a sua melhor produção.

Desencanto é sobre um romance proibido entre um médico casado e uma mulher, também casada. Laura (Celia Johnson) é uma típica mulher dos anos 40, boa mãe e boa esposa. Entretanto, ao invés de focar sua vida apenas no marido e nos filhos, ela tem os seus momentos privados, mais precisamente todas as quintas-feiras, quando pega um trem e vai até outra cidade fazer compras, ler um bom livro e ir ao cinema, geralmente sozinha. Tudo está maravilhosamente bem até o dia em que ela está na estação de trem esperando-o para voltar para casa e, por causa de um cisco de carvão em seu olho, conhece o charmoso clínico geral Alec Harvey, que a liberta de seu pequeno incômodo. Após o incidente, os dois acabam por se encontrarem acidentalmente em outras ocasiões, e depois de um almoço inocente aqui e um cineminha ali, inevitavelmente se apaixonam.


























A obra de Lean é fascinante, a começar pelo modo narrativo, em flash-back. Assim como em Cidadão Kane, logo no começo do filme já nos é mostrado o final da obra, um desfecho triste da história de amor do casal, e é a partir desse final, que consegue transmitir uma carga dramática altíssima mesmo o espectador não sabendo exatamente o que está por vir (a genialidade se encontra nesse fator), que o enredo se desenrola, todo através da imaginação de Laura, que relembra os acontecimentos como se tivesse contando-os para seu amoroso e inocente marido, uma vontade de ser sincera que tenta reprimir a qualquer custo.

Além da narração relativamente fora do convencional, o romance de Lean possui uma fluidez de filmagem maravilhosa. Nunca ficamos cansados com o enredo, o filme é sim um melodrama, mas um melodrama de alto nível. Cenas como a de Laura rindo aliviada depois de uma conversa com seu marido (quando ela pensa que seu encontro com Alec não significou nada demais), ou quando seu amante está contando seus sonhos como profissional na área da Medicina Preventiva são muito prazerosas de se assistir. As passagens de amor entre Laura e Alec são puramente críveis, Lean nos faz sofrer com esse amor impossível e, ao concentrar boa parte da obra em uma estação de trem, sentimos a sensação de urgência e conseqüentemente de perigo iminente devido ao barulho da locomotiva e a sua pontualidade que, por causa da situação do casal, é absurdamente irritante. A obra também é focada mais no sofrimento de Laura, apenas sabemos um pouco da vida de Alec através de sua amante. Dentro outros motivos, esse foi um que fez com que a película fosse tachada, na época, como filme de mulher.

Os atores principais nos presenteiam com atuações primorosas. Celia Johnson, na cena já comentada, deixa o espectador avisado sobre todo o sofrimento pelo qual o casal passou em poucas semanas, através de seu olhar, ao mesmo tempo confuso, desesperado e apaixonado, e com contrações nervosas da boca, uma sutileza de tirar o chapéu, além de sua voz doce, porém pesarosa. Trevor Howard faz o seu melhor ao dar vida a um médico sonhador e perdidamente apaixonado. O elenco coadjuvante dá um toque mais leve ao filme, especialmente a personagem interpretada por Joyce Carey (ela já havia atuado em outro filme de David Lean, Nosso Barco, Nossa Alma), que trabalha na aconchegante cafeteria da estação, e seu affair interpretado pelo carismático Stanley Holloway (o divertido e simpático Alfred P. Doolittle de Minha Bela Dama), apesar da história entre os dois não acrescentar nada à trama ao não ser mesmo o alívio cômico. Cyril Raymond, o marido de Laura, também brilha em seus poucos momentos na tela. Por falar em cafeteria aconchegante, os cenários são bastante caprichados, destaque para a sala da casa de Laura e as cenas dentro do cinema (que serve como uma deliciosa curiosidade para os cinéfilos de plantão).












A direção de David Lean é segura, nunca se sobrepondo aos atores, pelo contário, ele tira o melhor deles. Lean faz um belo contraste entre o claro das ensolaradas cenas matutinas (onde geralmente os amantes estão felizes, passeando de barco ou dirigindo por uma estrada), e o escuro, nas cenas da estação, como já dito, onde há sempre a sensação de urgência, e desespero devido principalmente ao peso na consciência da protagonista. Apesar do fator melodramático, os diálogos não são irritantemente melosos, pelo contrário, tudo é muito próximo do real, fazendo com que cada frase de Laura e Alec soe irreprochável.

Desencanto é um verdadeiro clássico, infelizmente pouco conhecido pelo grande público. De uma forma ou de outra, os épicos de Lean acabaram por ofuscar suas obras ‘menores’, mas não menos impactantes. Junto com A Princesa e o Plebeu (Billy Wilder), os filmes formam os dois maiores exemplos de obras sobre amor proibido de Hollywood.

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